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imagem: Pietá de Marina Abramovic |
Pra
Quem Sofremos Tanto?
Da inadimplência
emocional ao êxtase consentido
Quem é Deus em mim?
Sou homem da passagem. Passagem do século XX para o XXI. Muita coisa ainda
acontece em meu peito. Esse meu tempo me pesa às costas. Contemporaneidade.
Qual o sentido dessa palavra, desse tempo, desse lugar? Como suportar tantas
narrativas a respeito de sucessivas derrotas? Foram duas guerras mundiais, uma
ida à lua, a consolidação de um neoliberalismo, a vitória do capital sobre as
relações humanas, uma democracia dissimulada, liberação sexual – AIDS... além
de trazer na alma a marca de dez séculos de Idade Média fomentando
intolerância, a era cruel de impérios atrozes, as comprometidas versões acadêmicas
sobre nossas origens... Hoje me percebo
um homem em confluência. Confluência de desejos contraditórios, confluência de
pulsões instintuais e transcendentais, confluência de tempos, culturas e verdades
sazonais. Rarefeito, permeável, poroso, abrangente, plural é como me encontro
hoje. Homem de difícil síntese e definição. Há uma complexidade em meu caminho
que nem família, nem escola, nem estado, tampouco religião souberam compreender
em essência. Não me deixo capturar pela rede
de doutrinas e crenças que usam o medo como mecanismo de manipulação. Não me
sinto representado. Não me sinto representado por nenhum partido político,
nenhum sistema financeiro, nenhuma religião. Essas instituições não dão conta
da pessoa que me tornei. Trago em meus corpos, corpos de sonhos, corpos de
realidades a marca de milênios de esperanças perdidas, jogadas fora pelo medo de
Ser Quem Sou. Que abrigo me protegerá
a alma do descaso do mundo? Abrigo que não me faça psicologicamente uma pessoa regredida.
No início uma orfandade cósmica me enchia de
frio os ossos. Meus olhos buscavam paisagens razoáveis à inteligência... e
nada. Da onde vim, pra onde vou, quem sou... e esse céu imenso vai dar aonde? As
intempéries, doenças, mortes?! Quem criou tudo isso? Vulnerabilidade é o meu
nome. Vulnerabilidade. Não tardou e meu medo pariu um pai, um pai inventado,
historicamente inventado, idealmente factual, oportunamente institucional. A
construção das religiões que como o nome diz, nasceram para religar algo que,
na verdade, nunca esteve separado, apenas ficou longe da memória, deixando
marcas profundas no homem que se queria homem e não eternamente filho, filho de
um pai possessivo de sua cria. A esse pai demos uma morada onde pecados eram
expiados. Pecados de ir contra os preceitos estabelecidos por uma doutrina
religiosa ou quem sabe, pecados do ego virar as costas para o Ser livre, potente e criador que me
constitui? Depois, com a psicologia profunda, demos um significado simbólico à
este pai pretensamente factual. Santos, ícones, paramentos transformaram-se em
arquétipos potentes ao espírito. Aqui me senti mais liberto da tirania de seres
perfeitos que me davam abrigo, como se esse abrigo não existisse, desde sempre,
em minha subjetividade, como se esse abrigo não fosse o Ser que É em mim. Então, a psicologia extraiu da religião uma gama
de mitologias, símbolos e releituras dos textos sagrados inspiradores do
processo de nos tornarmos indivíduos mais seguros deste processo e conscientes
da nossa pequeneza cósmica e grandeza humana. Isto se deu da metade do século
XX pra cá. E agora, para este homem contemporâneo, uma mística potente, aberta
e convergente se apresenta como Caminho que vai além das representações. O
Agora, sem imagens, textos, nem interpretações se apresenta a este novo homem
pós-religioso, que amadureceu psicologicamente e não necessita mais projetar
seu poder anímico em terceiros, tampouco interpretar o Real como se este fosse tão somente um território de símbolos a
serem decifrados. O Mistério se faz trans-cognitivo. É preciso vivê-lo como a
Vida vive a si mesma. Para o homem contemporâneo, pós-web, enredado, ansioso,
apressado, conectado na rede e desconectado de seus sentimentos mais profundos,
fica o desejo de otimizar performances
em detrimento do usufruto do Agora. Para o homem contemporâneo a fé e seus
objetos-fetiches foram transformados em saber Deus no Ato de respirar o
Presente. A matriz energética que constitui cada pedaço de coisa e que se encontra
em todo o universo se apresenta aos olhos do homem contemporâneo como o corpo
de Deus, este Mistério que não foi feito para ser entendido, mas sim,
vivenciado como um surpreendente cotidiano. Um surpreendente cotidiano. A
mística do Ato em se fazer Ser no
mundo vai além do Deus produzido pela cultura, além do arquétipo produzido pela
cultura e enraíza no Instante Agora, desprovido de devocionismos,
intelectualismos, tradições e intermediários. Nutridos do Numen o filho que se fez homem, a filha que se fez mulher
experenciam Deus simplesmente no Sopro que lhe respira os dias felizes, os dias
tristes, os dias.
Lembro que a cultura fez da natureza viva,
livros sagrados a serem seguidos; fez do natural e seus sentidos, as inúmeras
interpretações deste livro e seus intérpretes e do Agora, a cultura construiu
templos a serem freqüentados por aqueles que necessitam abrigo por toda a vida.
Nossa nudez numinosa foi tampada pela
fé, pela moral, pelo arquétipo e permanecemos pequenas crianças com medo de
nossa potência, potência erótica em Ser,
potência de homens e mulheres verticalizados no amadurecimento emocional e na relação
carne-espírito, mundo e vida. Nessas apropriações culturais o vento foi chamado
de impermanência; o rio, de curso da vida; o oceano, de totalidade; as
florestas, de áreas sombrias da alma; a montanha, de ascese; e o céu, de Deus,
Mistério, grande espírito... E os
significados ficaram mais importantes do que a experiência em si, direta,
inteira da Vida e suas mortes magníficas. Portanto, ao homem do passado, que
ainda não se fez emocionalmente crescido ou simplesmente se recusa a crescer, a
instituição da fé, como também a instituição do arquétipo realmente podem ser
ferramentas úteis ao processo, mas ao homem contemporâneo cabe-lhe o Presente
do Agora e todas as suas paradoxais confluências. Este Agora agridoce. Todos
são os seus tempos. Todos são os seus sexos. Todos são os seus nomes. Lembrando
que não nascemos mulheres e homens e a chance de nos tornarmos é mínima, pois estacionarmos
como filhos ou pais é a derrota do humano. Portanto obrigado à natureza, obrigado
à religião, obrigado à psicologia e finalmente, obrigado ao Agora, este
território de infinitudes disponível ao olhar. Lugar de incompreensíveis méritos.
Lugar derradeiro que completa toda essa cadeia que conduz à Liberdade. É tempo
de sermos felizes apesar do mundo e pelo mundo.